Ressignificar as memórias para sonhar com a mudança

Logo no início de Liyana (2017), de Aaron e Amanda Kopp, a professora diz para um grupo de crianças que elas serão responsáveis por contar uma história. Sem limitações, regras e com apenas uma condição: sentir-se livre para criar.

Há duas grandes narrativas no filme: o documentário que acompanha essa oficina de contação de histórias com crianças da Suazilândia, pequeno país africano com fronteiras entre Moçambique e África do Sul, e a belíssima animação construída justamente a partir da história criada em coletivo pelas crianças. São dois filmes que se conectam em um.

Aos poucos percebemos que aquelas crianças moram em um orfanato e possuem, em comum, um trágico passado marcado por violência, dores e traumas. É justamente através dos personagens ficcionais criados por elas, que percebemos a ressignificação de um passado sombrio. Liyana, a protagonista ficcional da história, representa também novas possibilidades de futuro para quem, até então, nunca teve protagonismo na própria vida.

A jornada de Liyana é perigosa e cheia de aventuras. As crianças fizeram questão de colocar temas pertinentes à realidade delas entre os desafios enfrentados pela heróina: alcoolismo, abuso sexual e a epidemia de AIDS. Suazilândia fica na região conhecida como África subsaariana, composta de 48 países que representam 12% de toda a população mundial. É nessa região que estão 2/3 de todas as pessoas infectadas pelo vírus HIV no planeta. Na Suazilândia, onde se passa a história construída pelas crianças, 30% dos adultos estão infectados. A estimativa da OMS é que nessa região cinco em cada seis novas infecções entre adolescentes de 15 a 19 anos acontecem em meninas. Atentas a isso, as crianças levam essas questões todas ao filme. Os pais de Liyana, por exemplo, morrem em decorrência de complicações causadas pelo HIV.

E não pense você que a profundidade de temas na história criada pelas crianças termina aí. Liyana ainda precisa fugir de uma gangue que sequestra crianças para tráfico humano. Em determinado momento, a professora pergunta como que os meninos e as meninas gostariam que a história da heroína, criada por eles, terminasse. Podemos tomar esse questionamento para nossas próprias vidas. Como queremos construir nossa jornada? Como será que vai terminar nossa história? Interessante no filme é o fato de que a potência narrativa só existe pelo compartilhamento de experiências. São todas aquelas crianças, juntas, que conseguem ter empatia pela dor do outro. A criatividade nasce desse esforço em pensar no coletivo, trabalhar em coletivo e construir em coletivo. A pandemia do novo coronavírus nos faz ver Liyana com outros olhos, justamente pela necessidade de distanciamento social e pela urgência de pensar em novas formar de viver em sociedade.

Construir a história de Liyana também é uma maneira de cicatrizar as feridas do passado que existem naquele orfanato. É uma terapia ativa! Em que todas aquelas crianças transformam os traumas do passado delas em esperança para o futuro. E não é justamente o que nós adultos também precisamos?

 

 

 

Piero Sbragia é jornalista, documentarista e mestre em Educação, Arte e História da Cultura. Autor do livro “Novas Fronteiras do Documentário: Entre a Factualidade e a Ficcionalidade”, lançado em 2020 pela Chiado Books.


Publicado em 20 novembro 2020


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